China e a eterna encruzilhada entre presente, passado e futuro
Ni hao!
Estamos de volta com nossa série de textos sobre a China extraídos de ZHONG GUÓ, O PAÍS CENTRAL: BREVE PANORAMA HISTÓRICO E INSTITUCIONAL, texto publicado por Tomaz Vicente de O. Freitas nos cadernos ASLEGIS.
Se você ainda não começou do início, sugiro que o faça agora mesmo, clicando aqui, e depois volte para cá. No primeiro post você também encontra o índice com links para todos os textos desta série, dividida em oito partes, a fim de tornar mais fácil sua leitura e assimilação.
Isto posto, sem mais delongas, vamos à nona e última parte, na qual o autor conclui sem breve panorama. Mais uma vez, com o texto original reproduzido a seguir:
Sobre os interesses cruciais do povo chinês versus e a cruzada ideológica ocidental
O que verdadeiramente aterroriza um chinês chama-se em mandarim luàn, o caos. Caos econômico, caos social. O chinês “comum” tem, profundamente arraigado, sentimento de verdadeiro horror ao caos, porque caos significa desorganização da produção, fome e morte, de milhões de chineses, conforme dita sua larguíssima e amaríssima experiência histórica.
Do fundo de seu atávico pragmatismo, questionam os chineses: na vida, não se pode querer tudo, há que se fazer opções: quais são os mais fundamentais entre os direitos humanos, senão os direitos à comida diária e à saúde, e também à educação e à moradia digna? Em um país onde a tradição, ditada pela necessidade, é traduzida cruamente na expressão popular “coma tudo que voa e não é avião e tudo que tem quatro pernas e não é mesa ou cadeira”, julgamos que a população dificilmente se aventuraria a apoiar o processo de transformação profunda da estrutura e da organização do Estado, que se faria indispensável à implantação da bela ideologia política ocidental liberal.
No curso desse processo político, de desfecho imprevisível, facilmente cairia a China em uma nova era de incertezas, provavelmente turbulenta, traumática, e muito possivelmente caótica: precisamente o que o povo chinês deseja evitar.
Esse sentimento popular se pode confirmar conversando com chineses que vivem no exterior e também “circulando” pelo país e conversando com as pessoas, como fez, por exemplo, a jornalista Cláudia Trevisan, que registrou em seu livro: “Existe um razoável grau de empatia entre a população e o partido, muitos se declaram comunistas e a maioria parece não ver o PCC como um antagonista a ser combatido”.
Na China, os interesses do povo se expressam pelo Partido Comunista, que toma suas decisões no conjunto de instituições que formam o Poder Legislativo. Os outros dois Poderes são subordinados ao Legislativo. Para contextualizarmos as veementes críticas usualmente feitas a esse sistema político, pode ser útil questionarmos: isso pode ser condenado tão radicalmente se garante a alimentação, a saúde, uma educação de qualidade para todos os chineses, um enorme avanço tecnológico e a prosperidade do país? Esse sistema é pior - para citar um exemplo interessante, bem dentro de nossa casa -, que o de uma aldeia indígena brasileira, onde os deficientes físicos são sistematicamente eliminados, por eugenia racial? Exige-se, acaso, que os povos nativos das planícies norte-americanas ou o povo curdo, para utilizar dois exemplos bem díspares, unidos pelas atrocidades de que foram – continuam sendo – vítimas, apliquem a doutrina de separação e tripartição de poderes de Montesquieu, como se pretende exigir que a China o faça? Quem conheceu a vida de um trabalhador no Tibete “livre”, de antes de 1959, marcada por amputações de olhos, mãos e pés, penas ali institucionalizadas, habitualmente aplicadas?
Sabidamente, é sempre muito mais fácil pregar a cartilha que praticá-la. Assim, a intensa doutrinação ocidental, que busca impingir seus valores, pretensamente superiores, aos povos orientais, deve ser vista apenas como sumamente característica de uma cultura expansionista, “missionária”, que sofre de profundo e lamentável complexo de superioridade, de resto, absolutamente injustificado, como demonstra de forma magistral Jared Diamond, em seu brilhante Guns, Germs and Steel.
Na verdade, os conceitos de ordem democrática, de Estado Democrático de Direito e de participação popular nos destinos da Nação Chinesa divergem em larga medida daqueles doutrinariamente aceitos e precariamente praticados, em maior ou menor medida, nos países ocidentais ao longo dos últimos 200 anos, e derivam da evolução de uma tradição confucionista consolidada em mais de 4.000 anos de história registrada do povo chinês.
Assim, a organização e o funcionamento do Estado chinês têm por base a absoluta supremacia do Poder Legislativo, locus de tomada das decisões em todos os níveis – nacional, provincial e local – e de realização das aspirações populares, expressas por meio do Partido Comunista, entendido como canal político legítimo de manifestação da vontade popular.
É, assim, fundamental que se tenha muito presente, ao abordar a organização do poder político na China, que não cabe aplicar-lhe a historicamente recente concepção ocidental de independência e harmonia dos poderes, assim como formulada no Espírito das Leis, por Montesquieu, no século 18, e posteriormente utilizada largamente nas democracias ocidentais até nossos dias, mediante o uso do sistema de checks and balances, os conhecidos freios e contrapesos, que seriam a garantia de estabilidade democrática no Ocidente.
Na China, ao contrário, o poder constitucional supervisor e fiscalizador atribuído às Assembleias Populares é exercido não apenas sobre os entes executivos do Estado - como ocorre entre nós com relação ao que denominamos Poder Executivo - mas também sobre os entes judiciários e procuratoriais, equivalentes, respectivamente, ao nosso Poder Judiciário e ao Ministério Público.
A embasar tal organização do poder político na China está o princípio do centralismo democrático, segundo o qual os representantes eleitos participam ativamente da administração do Estado e exercem diretamente todos os poderes. Tudo visando a garantir a governabilidade do gigantesco país de quase um bilhão e meio de habitantes.
A respeito das questões referentes à existência, à atuação e à participação na vida política dos demais partidos políticos existentes na China, a visão que prevalece, segundo nos parece, é de que a atual supremacia do Partido Comunista é resultado da caracteristicamente pragmática percepção chinesa – ao menos, da imensa maioria do povo chinês - de que aquilo que realmente lhe interessa, ou seja, a estabilidade social, política e econômica do país encontra-se preservada, e deve-se ao inegável papel de salvação nacional do PCC, que garantiu à China vencer, íntegra e coesa, um período de século e meio de caos completo e sucessivos desastres nacionais, provocados pelos mesmíssimos ocidentais, que agora se esforçam por “catequizar” a China com belíssimos ensinamentos contrários aos que costumam aplicar.
No entanto, é inegável, como já frisamos, a notória falta de maturidade política do país, que deve ser atribuída à longuíssima estabilidade das instituições imperiais e à consequente falta de experiência no jogo político democrático, a que já se habituaram os ocidentais, no qual, por exemplo, a instrumentalização da mídia na condução da opinião pública tem um papel notoriamente tão relevante como mecanismo eficaz para a obtenção de interesses de grupos específicos, inclusive eleitorais.
Sobre o embate recente: wu x wen ou Marx x Confúcio
Se a doutrina marxista, de luta de classes como forma de atingir o igualitarismo e a justiça social e econômica, moldou a atual república chinesa, em sua origem, é interessante refletir por que motivo não foi Marx, o filósofo estrangeiro, o personagem escolhido para figurar ao lado de Mao, seu discípulo, em Tian An Men, bem no coração político da China, mas sim Confúcio, a quem Mao abominava, e cuja doutrina é de certa forma a antítese do marxismo, com sua pregação multimilenar da harmonia social e do respeito sagrado à autoridade, desde a paterna até a pública.
Que ironia do destino foi reservada ao ferrenho anticonfucionista Mao: ter de conviver para sempre com seu maior desafeto para o resto de sua morte. Por que motivo terão seus correligionários, e antigos camaradas, lhe reservado um destino tão infausto post mortem?
A resposta talvez não demande a elaboração de um doctor arbeit. Antes de qualquer coisa, a atual geração dirigente na China, formada por cinquentões e sessentões, não ousa repudiar a memória de Mao, primeiramente, devido a seu carisma popular, ainda fortíssimo, porém vivenciou, na infância e na juventude, como experiência concreta, dramas pessoais e familiares simplesmente tétricos, causados pelos seus erros monumentais: o programa econômico fracassado Grande Salto para Frente e a trágica Revolução Cultural.
Ou seja, é preciso ter muito claro que a atual geração no poder não nutre a menor simpatia pessoal por Mao, muito pelo contrário, ainda que, obviamente, reconheça seu importante papel na liderança máxima do movimento social-político-militar que salvou a China unida, naquele que foi provavelmente o momento mais crítico de toda a sua longa história.
Assim, impossível deixar de perceber a ironia contida no perpétuo convívio forçado de Mao com Confúcio em Tian An Men, que parece soar silenciosamente como uma veemente reprimenda ao Grande Timoneiro.
Conclui-se que o marxismo, como doutrina “importada” do Ocidente, foi “instrumentalizada” pela China somente para ultrapassar uma situação “pontual” desfavorável em sua história. O marxismo na China – como de resto na história – não passou de um espasmo, algo como um espirro, possivelmente em certas situações necessário para purgar algo que incomoda, mas totalmente efêmero.
O que se tem hoje, na China, é o mecanismo “uma nação, dois sistemas” praticado não apenas – como usualmente se considera – a Hong Kong e Macau, mas também à dualidade mais crucial dos regimes político, nominalmente comunista, e econômico, que pode ser qualificado como um capitalismo de Estado, no qual o Estado chinês é o maior empreendedor, o ator principal. Assim, tanto na cena política como econômica, sobressai o Estado, onipresente, que repousa e viceja sobre um fundamento filosófico: a doutrina confucionista – com todas as suas interpretações e ramificações posteriores.
De fato, seus quatro princípios básicos (em uma versão ultrassimplificada: bondade ou humanidade, comprometimento com o bem comum, respeito pelas solenidades sociais e religiosas e busca do saber) seguem, há mais de dois milênios, sendo os fundamentos da ordem social chinesa, e continuam norteando o pensamento público, da mesma forma que, no Ocidente, aprendemos, nos últimos cinquenta ou cem anos, a rezar a cartilha da liberdade, da igualdade, dos direitos humanos e trabalhistas, e, ainda muito mais recentemente, dos direitos da natureza.
Assim, a presença na Praça da Paz Celestial, fazendo companhia a Mao, de Confúcio – “fundador do sistema ético chinês”, no dizer de Jonathan Spence, cuja doutrina foi, conforme John K. Fairbank, “a fé viva da elite chinesa até o século 20”, – e também no século 21, podemos acrescentar – , não deixa margem a dúvidas: Mao representa o passado recente da China, traumático e glorioso, dramático e vencedor, causou males e livrou a China de males ainda maiores, possivelmente da hecatombe nacional; quanto a Confúcio, representa muitíssimo mais: é não só o longo passado, mas principalmente o presente e o futuro da China.
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E encerramos por aqui este breve panorama sobre a China. Espero que tenha gostado e que seja útil.
Zái Jiàn!
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Créditos e referências
Ilustrações e fotos creditadas na ordem em que aparecem no post.- Ovo Gigante - foto de Ade Russell, encontrada no Flickr.
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