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Soldados chineses marcham na Praça da Paz Celestial, em Pequim, China

Ni hao!

Estamos de volta com nossa série de textos sobre a China extraídos de ZHONG GUÓ, O PAÍS CENTRAL: BREVE PANORAMA HISTÓRICO E INSTITUCIONAL, texto publicado por Tomaz Vicente de O. Freitas nos cadernos ASLEGIS.

Se você ainda não começou do início, sugiro que o faça agora mesmo, clicando aqui, e depois volte para cá. No primeiro post você também encontra o índice com links para todos os textos desta série, dividida em oito partes, a fim de tornar mais fácil sua leitura e assimilação. 

Isto posto, sem mais delongas, vamos à quarta parte, com o texto original reproduzido a seguir:

A vitória comunista e a Segunda República (ou República Maoísta)

Em 1949, afastada a nefasta influência dos países europeus – com seu ópio, seus canhões e seus tratados comerciais aviltantes e espoliativos –, exorcizado o invasor japonês – com seu séquito de horrores –, e, finalmente, derrotada a velha ordem tradicional, agrupada no Guo Min Dang, consumou-se a vitória completa dos comunistas sob a forte liderança de Mao Ze Dong.

A estrela de Mao começou a brilhar durante a famosa Longa Marcha, episódio épico decisivo para o desfecho da guerra civil, especialmente sob o aspecto psicológico. Após terem sofrido uma pesada derrota tática, expulsos pelos nacionalistas de sua base principal, localizada no centro-oeste, em Jiangxi, oitenta mil comunistas realizaram em 370 dias - entre 16 de outubro de 1934 e 20 de outubro de 1935 – uma prodigiosa retirada estratégica de quase dez mil quilômetros, em condições extremamente adversas, o que fortaleceu extraordinariamente seu moral, fazendo-os sentir-se – e parecer aos olhos dos seus oponentes – invencíveis. Mesmo tendo, ao final da retirada, contabilizado a perda de metade de seu efetivo inicial, e até por esta mesma razão, os sobreviventes ganharam, para sempre, o status de herois míticos.

As razões da vitória final sobre o Guo Min Dang – cujas forças eram quatro vezes mais numerosas -, e da unificação do país sob a égide do Partido Comunista são hoje bastante evidentes: inteiramente descomprometidos com a tradição confuciana de erudição, harmonia e estabilidade social, pelo contrário, rejeitando-a como causadora da desgraça nacional, partidários, portanto, da corrente wu, militarista, adepta da solução violenta das contradições, com sólida base doutrinária nunca antes tida – agora fornecida por Marx –, perfeitamente adaptados às duras condições da guerra sem quartel nas áreas rurais – pois dotados da rusticidade própria dos trabalhadores do campo -, liderados por comandantes militares carismáticos e competentes (o próprio Mao, Lin Biao, Zhou En Lai, Deng Xiao Ping, Zhu De, entre outros), os comunistas chineses tiveram a refinada habilidade política para galvanizar o desejo de transformação social da população rural, de conquista de igualdade e de promoção social dos “eternamente” menos favorecidos economicamente.

A admirável obra de engenharia política dos comunistas consistiu, assim, em despertar o enorme caudal de energia da população rural – represado durante milênios em profundos sentimentos latentes de frustração, descontentamento, revolta, rancor social e desesperança –, canalizando-o – poder-se-ia dizer, instrumentalizando-o – como força praticamente invencível para a conquista dos ideais comunistas e, naturalmente, do poder pelo Partido Comunista.

A façanha política do Partido Comunista Chinês foi, portanto, ter obtido a transformação de um vasto conjunto de sentimentos populares essencialmente negativos na energia positiva que se fazia necessária para a construção de uma nova sociedade e de um novo Estado, no qual, rejeitado radicalmente o poder intelectual, ficaram estabelecidas, logo de início, três fontes de poder: o próprio Partido, a estrutura governamental formal e o exército.

Para conseguir que a China reencontrasse seu dao, seu caminho histórico, não estava em absoluto preparado o Partido Nacionalista, Guo Min Dang, pois hoje parece fora de dúvida que efetivamente se fazia indispensável – por mais doloroso que possa ter sido –, varrer para o lixo da história, ainda que temporariamente, a tradição cultural do país e, muito especialmente, a tradição confuciana de governo, vista como responsável pela sequência de tragédias nacionais ocorridas no século antecedente e por toda a insatisfação dos trabalhadores, especialmente das áreas rurais.

Acumulado o capital político constituído por imenso carisma pessoal, pela confiança da população rural no ideário comunista que pregava e por suas múltiplas vitórias militares – entre as quais merece ser incluída a da Guerra da Coreia, travada contra ninguém menos que a principal potência militar mundial, apesar das trágicas baixas nela sofridas (entre 700 e 900 mil soldados) – Mao Ze Dong arriscou-o perigosamente em duas aventuras desastrosas: a primeira, econômica, a segunda, político-ideológica.

A aventura econômica, o denominado Da Yue Jin, ou Grande Salto para Frente, programa lançado em 1957, teve o objetivo de aprofundar a coletivização dos meios de produção, industrializar o país e acelerar seu crescimento econômico. O resultado foi tétrico: desorganização da produção agropecuária e fome em escala gigantesca, provocando mais de vinte – segundo algumas fontes, trinta – milhões de mortes por desnutrição entre 1959 e 1962, sem contar as crianças, que, desnutridas, morreram nos anos seguintes (somente em 1963, metade dos óbitos na China foi de crianças com menos de dez anos de idade).

Na esteira do desastre econômico, como sói acontecer, a crise política.

Criticado internamente no partido pelo desastre do Grande Salto, crescentemente desgastado politicamente, vendo crescerem as lideranças que se lhe opunham de Deng Xiao Ping e Liu Shao Qi, e, ao que parece, pessimamente aconselhado por sua terceira mulher, Jiang Qing – uma radical doentia, com traços nitidamente psicóticos –, Mao, cometeu um ato de puro desespero político, perpetrando mais um monstruoso erro em sua carreira política na condução dos assuntos nacionais: a chamada Grande Revolução Cultural Proletária.

Mao vislumbrou na Revolução Cultural o recurso extremo para barrar a crescente oposição interna no partido e a fragilização de sua posição política, ou seja, para retardar por uma década, até sua morte, a ascensão inexorável da corrente capitalista no PCC.

Com tal objetivo em mente, aliou-se à facção partidária que militava no extremo oposto do espectro ideológico, ou seja, ao que havia de mais retrógrado, radical e obscurantista no partido – a gangue de Jiang Qing - mergulhando a China em um regime de terror que durou uma década inteira. Voltou-se contra todos que detinham algum grau de poder intelectual, mesmo que ínfimo, como professores secundários, e principalmente contra os quadros partidários que possuíam capacidade crítica, como Deng Xiao Ping, utilizando-se da energia e da ingenuidade da juventude chinesa como massa de manobra.

Assim, estudantes, ingênuos e idealistas – e, a seguir, extremamente violentos -, foram transformados em “guardas vermelhos” da Revolução Cultural. Claramente, viu Mao na elite burocrática do próprio Partido Comunista o “fantasma” de uma nova versão da elite intelectualizada confucionista, com a qual sem dúvida mantinha uma confusa relação psicológica de admiração e ódio, e que, na sua visão, era a causadora da problemática China que herdara. Atacou, então, com fúria, seus próprios camaradas do PCC por meio dos instrumentalizados jovens guardas vermelhos.

Iniciada em 1966 e concluída efetivamente apenas com a morte de Mao e a prisão de Jiang Qing e seu grupelho, em 1976, a Revolução Cultural foi uma era de extrema violência, tumultos institucionalizados e insuflados pela mais alta hierarquia do partido (leia-se: Mao, Jiang Qing e seus três principais seguidores, Zhang Chunquiao, Wang Hongwen e Yao Wenyuan), que resultaram em vasta destruição de prédios históricos, templos e obras de arte tradicional. Citando Acheson, informa-nos Kissinger em sua recente obra On China
 que somente a intervenção pessoal do sensato Zhou En Lai salvou do quebra-quebra a Cidade Proibida, maior tesouro histórico-artístico da China.

Julgamentos populares ruidosos, humilhações públicas e inúmeros assassinatos de todos que detinham algum tipo de poder ou ascendência sobre a juventude, como professores e administradores escolares, transformaram universidades e escolas em verdadeiros campos de batalha durante a Revolução Cultural, resultando no fechamento dos estabelecimentos de ensino durante anos, no final dos anos 1960, e no desmantelamento do sistema educacional chinês no período.

Sobre a perseguição direta aos ideais confucionistas e, mais especificamente, à memória do Filósofo máximo do Oriente, temos o vívido relato de Kissinger: “Alunos e professores revolucionários de Pequim caíram sobre a aldeia natal de 
Confúcio, jurando pôr fim à influência do antigo sábio sobre a sociedade chinesa de uma vez por todas, queimando livros antigos, destruindo placas comemorativas e arrasando os túmulos de Confúcio e seus descendentes”.

E comenta: “Uma sociedade tradicionalmente governada por uma elite de literatos confucionistas agora se voltava para camponeses rústicos como fonte de sabedoria ...”

Evidentemente, da traumática aventura anarquista de Mao e Jiang Qing resultou também a quebra do ânimo da grande maioria dos membros do partido, que, já tendo vivenciado a traumática experiência do Grande Salto, formaram a convicção de que o caminho wu, a opção pela violência, já tinha ido longe demais e possivelmente conduzisse a China mais uma vez ao temido caos.

Estava preparado o dao da Terceira República Chinesa: pragmática, capitalista e confucionista.

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E por enquanto é só. Te aguardo na próxima semana, com a continuação que irá tratar da morte e sucessão de Mao, bem como da adesão da China ao capitalismo.

Grande abraço e tudo de bom!

Zái Jiàn! 

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Créditos e referências

Ilustrações e fotos creditadas na ordem em que aparecem no post.

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