A elite burocrática da China Imperial e a grande esquadra de Zheng He
Ni hao!
Estamos de volta com nossa série de textos sobre a China extraídos de ZHONG GUÓ, O PAÍS CENTRAL: BREVE PANORAMA HISTÓRICO E INSTITUCIONAL, texto publicado por Tomaz Vicente de O. Freitas nos cadernos ASLEGIS.
Se você ainda não começou do início, sugiro que o faça agora mesmo, clicando aqui, e depois volte para cá. No primeiro post você também encontra o índice com links para todos os textos desta série, dividida em oito partes, a fim de tornar mais fácil sua leitura e assimilação.
Isto posto, sem mais delongas, vamos à segunda parte, com o texto original reproduzido a seguir:
O Estado imperial confuciano
Contrariando Hegel, que considerava haver apenas um homem livre na China, o imperador, pode-se hoje proceder a uma avaliação mais acurada da China imperial, que aponta seu prócer máximo - ainda que detentor da palavra final em uma imensa quantidade de assuntos de Estado - como uma espécie de prisioneiro em seu palácio, submetido a uma carga brutal de rituais e solenidades, que, a bem da verdade, ínfima margem de liberdade pessoal lhe deixava.
Livres de verdade, e poderosos, nos tempos do império, eram os membros da aristocracia. Seu enorme grau de liberdade na condução dos assuntos públicos derivando, antes de tudo, das dimensões continentais do país e dos precários meios de comunicação e transporte, que dificultavam sobremaneira qualquer tipo de fiscalização pelo poder central.
A aristocracia imperial chinesa revestia-se de características inteiramente sui generis: sem direitos hereditários formais a títulos nobiliárquicos, o poder dos mandarins (palavra portuguesa designativa dos mandatários ou autoridades públicas) surpreendentemente era um poder intelectual, derivado de sua refinada cultura, e, mais especificamente, de sua aprovação em concursos públicos, nos quais era avaliado o conhecimento da cultura chinesa, em particular da doutrina confucionista e da escrita, inclusive a caligrafia. Estratificado em níveis - local, regional e nacional, jinshi, o mais valorizado e importante -, de crescente dificuldade, o exame de conhecimentos era a única forma de ascensão ao mandarinato, ou seja, a única via de acesso a um cargo público de nível correspondente ao da aprovação.
A formação de uma aristocracia hereditária ocorreu de forma “natural” e praticamente inevitável: filhos de mandarins – cujos cargos públicos lhes proporcionavam fartos rendimentos, inclusive oriundos de corrupção, suborno e extorsão - não precisavam dedicar-se à atividade laboral, dispondo, portanto, do tempo necessário aos estudos, indispensável à aprovação nos concursos públicos, bem como do know-how e de copioso material de estudo fornecido pelos pais. Reuniam, assim, as condições essenciais a, por sua vez, também tornarem-se mandarins, ao contrário dos filhos de trabalhadores braçais, que de nenhum desses insumos dispunham para enfrentar os exames estatais.
Como nos informa Jonathan Spence, em seu The Search for Modern China: “Vivendo principalmente nas maiores cidades comerciais... os ricos estavam unidos por elaboradas organizações de clã ou linhagem, baseadas na descendência familiar pela linha masculina”.
Contrariando Hegel, que considerava haver apenas um homem livre na China, o imperador, pode-se hoje proceder a uma avaliação mais acurada da China imperial, que aponta seu prócer máximo - ainda que detentor da palavra final em uma imensa quantidade de assuntos de Estado - como uma espécie de prisioneiro em seu palácio, submetido a uma carga brutal de rituais e solenidades, que, a bem da verdade, ínfima margem de liberdade pessoal lhe deixava.
Livres de verdade, e poderosos, nos tempos do império, eram os membros da aristocracia. Seu enorme grau de liberdade na condução dos assuntos públicos derivando, antes de tudo, das dimensões continentais do país e dos precários meios de comunicação e transporte, que dificultavam sobremaneira qualquer tipo de fiscalização pelo poder central.
A aristocracia imperial chinesa revestia-se de características inteiramente sui generis: sem direitos hereditários formais a títulos nobiliárquicos, o poder dos mandarins (palavra portuguesa designativa dos mandatários ou autoridades públicas) surpreendentemente era um poder intelectual, derivado de sua refinada cultura, e, mais especificamente, de sua aprovação em concursos públicos, nos quais era avaliado o conhecimento da cultura chinesa, em particular da doutrina confucionista e da escrita, inclusive a caligrafia. Estratificado em níveis - local, regional e nacional, jinshi, o mais valorizado e importante -, de crescente dificuldade, o exame de conhecimentos era a única forma de ascensão ao mandarinato, ou seja, a única via de acesso a um cargo público de nível correspondente ao da aprovação.
A formação de uma aristocracia hereditária ocorreu de forma “natural” e praticamente inevitável: filhos de mandarins – cujos cargos públicos lhes proporcionavam fartos rendimentos, inclusive oriundos de corrupção, suborno e extorsão - não precisavam dedicar-se à atividade laboral, dispondo, portanto, do tempo necessário aos estudos, indispensável à aprovação nos concursos públicos, bem como do know-how e de copioso material de estudo fornecido pelos pais. Reuniam, assim, as condições essenciais a, por sua vez, também tornarem-se mandarins, ao contrário dos filhos de trabalhadores braçais, que de nenhum desses insumos dispunham para enfrentar os exames estatais.
Como nos informa Jonathan Spence, em seu The Search for Modern China: “Vivendo principalmente nas maiores cidades comerciais... os ricos estavam unidos por elaboradas organizações de clã ou linhagem, baseadas na descendência familiar pela linha masculina”.
Ainda segundo Spence: “O status de classe alta vinha de uma combinação de quatro fatores: riqueza, linhagem, educação e posição na burocracia” e “o papel dominante da educação na China dos Qing (últimos séculos da era imperial) era resultado do poder e do prestígio atribuído aos cargos burocráticos, cuja admissão era controlada quase inteiramente por exames competitivos conduzidos pelo Estado. Em épocas normais, poucas pessoas chegavam a altos postos por meio de uma carreira militar, e menos ainda por pertencer a famílias com dinheiro ou conexões imperiais”.
Assim se dava, portanto, a legitimação do poder na meritocracia aristocrática chinesa, podendo ser atribuída a própria estabilidade social e política do império em larga medida ao sistema de concursos para acesso aos cargos públicos, que barrava qualquer pretensa alegação de privilégio injustificado com o tácito argumento de que não havia verdadeiramente classes sociais, pois quem detinha autoridade, estava investido de múnus público não por mero direito hereditário, ou seja, não apenas por ser “bem nascido”, mas sim por mérito pessoal, comprovado pela aprovação em concurso público, aberto à participação – em princípio - de qualquer súdito do império.
Com seu culto à tradição e aos antepassados, hábitos refinados e trajando a cabaia de seda de mandarim, a elite intelectual dominava a cena cultural e política do império chinês. Segundo Spence, “tudo se juntava para fazer da escrivaninha de todo erudito um mundo ritual e estético, antes mesmo que ele escrevesse a primeira palavra”.
A tensão entre os detentores desse saber erudito ou poder intelectual (wen), e os partidários da violência na solução dos assuntos de Estado, ou detentores do poder militar (wu), sempre esteve presente ao longo da história chinesa. No entanto, a supremacia da visão de mundo pacífica, estável, harmônica e ordenada, própria do confucionismo, sempre preponderou fortemente, e se traduz de forma admirável no posicionamento essencialmente defensivo do império chinês em face das tribos “bárbaras”, que viviam em suas fronteiras e constantemente o ameaçavam.
O posicionamento militar tradicional e, mais que isso, a postura da China perante o mundo, encontram-se materializados da forma mais eloquente possível na famosíssima “Muralha da China”, monumento máximo erguido por força humana, símbolo da postura defensivista diante de inimigos belicosos.
A demonstração cabal da forma pela qual a elite letrada confucionista impunha sua visão de mundo na condução dos assuntos do Estado é dada pelo episódio da esquadra de Zheng He.
Em 1403, o almirante Zheng He, fazendo prevalecer seu intuito na corte, e obtida a anuência do imperador Yong Le, armou uma esquadra com 317 embarcações. Para que se tenha um termo de comparação, a “Invencível Armada”, com a qual a Espanha pretendia invadir a Inglaterra, em 1588, tinha 132 embarcações. A seguir, a partir de 1405, Zheng He desfilou tal poderio naval pelos portos do Oceano Índico, numa missão basicamente diplomática, indiretamente mercantil (apesar da opinião parcialmente contrária de Fairbank e Goldman) e raramente agressiva, no melhor estilo soft power: praticamente sem acionar seus canhões, visitou os locais de interesse comercial para a China com duplo intuito, normalmente obtido: convencer os potentados locais a irem a Beijing prestar reverência ao imperador (a famosa kou tou, literalmente bater a cabeça no chão, gesto cerimonial de prostração profunda diante do imperador) como súditos tributários, e garantir que comprariam produtos chineses, o que, na visão chinesa, equivalia ao pagamento de tributos ao império.
Mesmo agindo dessa forma tão branda, e tendo obtido notório êxito, Zheng He contrariou de tal maneira os burocratas eruditos confucianos que, ao retornar de sua sétima e última expedição, teve sua esquadra desmantelada. Segundo Fairbank e Goldman: “Edward Dreyer descreve como as grandes viagens chinesas foram eliminadas pelos funcionários-eruditos treinados segundo o modelo confuciano, que se opunham por princípio ao comércio e ao contato com o exterior”.
Nunca mais, na era imperial, a China buscou contato com povos estrangeiros por mar, desta vez confirmando as observações de Hegel, em sua Filosofia da História, no sentido de que a China não tinha com o mar uma relação positiva, considerando-o apenas um limite, um post finis terrae sem qualquer interesse. Em sua arrogância intelectual, tipicamente ocidental, faltou apenas a Hegel observar quão profundamente essa relação negativa da China com as aventuras marítimas vinculava-se coerentemente, de forma positiva, à filosofia e à ética confucianas, na sua busca incessante por um mundo ideal ordenado e pacífico, estável e harmonioso, isento de influências externas desestabilizadoras.
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E por enquanto é só. Te aguardo na próxima semana, com a continuação que irá tratar do fim do império chinês e a Primeira República - ou República do Caos.
Grande abraço e tudo de bom!
Zái Jiàn!
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- O fim do império chinês e o caos da Primeira República (post publicado a partir de 07/11/2020)
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Créditos e referências
Ilustrações e fotos creditadas na ordem em que aparecem no post.- Pequena Grande Muralha - foto de Rodrigo Lourenço, encontrada no Flickr.
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