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Xamãs, xamanismo e os ossos oraculares da China antiga

Xamã mongol paramentada com uma roupa azul e adereços de penas e outras coisas na cabeça.

Você que me acompanha há mais tempo talvez saiba que a razão de ser deste blog é um livro que estou escrevendo, inspirado em Sun Tzu e seu famoso A Arte da Guerra. E devo dizer que, entre idas e vindas, despacito, ele está caminhando.

Aliás, este é um dos motivos pelos quais tive que diminuir a quantidade de textos novos aqui. Comecei a fazer pesquisas mais focadas em alguns temas que pretendo trabalhar na obra, e o texto que você está lendo agora já é resultado de uma dessas pesquisas.

E por que o xamanismo na China antiga?

Bem, em primeiro lugar, tive algumas ideias que podem ser interessantes para a história e que, obviamente, envolvem o tema. Em segundo lugar, não dá pra falar da China antiga sem falar de algo que era central para o cotidiano de então.

Concorda?

Comecemos, então, pelo começo: uma boa definição do que é xamanismo. E se você pensou que iríamos recorrer ao bom e velho dicionário, veja só o que diz nosso amigo Priberam:

Religião com práticas de magia, evocações e culto da natureza, presente em alguns povos da Ásia central e setentrional.

Simples assim - e pode acreditar, uma pesquisa em textos mais acadêmicos, não vai dar um resultado muito diferente disso aí.

Seguindo o jogo, adivinha qual país ocupa uma boa parte da Ásia central e da setentrional? Pois é, as evidências arqueológicas indicam que o xamanismo começou a ser praticado há mais de 4 mil anos na China.

Um exemplo encontra-se na escavação de dois túmulos de indivíduos de alto gabarito do Período Longshan (2.500 a 1.700 AEC - Antes da Era Comum), no cemitério de Taosi, província de Shanxi, que revelaram intactos quatro tambores de cerâmica - equipamento chave dos xamãs.

No entanto, o que de fato apresentou ao mundo os xamãs chineses foram os famosos Ossos Oraculares, sobre os quais iremos discorrer a seguir.

Xamã, os Ossos Oraculares e o caractere Wu


Fragmento de um osso usado como oráculo por xamãs na China antiga

O período da dinastia Shang, que durou de aproximadamente de 1.500 a 1.050 AEC, marcou o auge de uma prática de adivinhação que usava escápulas de bovinos ou (com menos frequência) plastrões de tartarugas. Eles eram aquecidos e o calor provocava rachaduras, posteriormente interpretadas pelo xamã.

Essa prática ficou conhecida como… Adivinha?

Descobertos no ano de 1.895 em Anyang, capital da dinastia Shang, os Ossos Oraculares continham inscrições que formavam a mais antiga escrita chinesa. Entre os caracteres dessa escrita, encontrava-se exatamente aquele que significa xamã: wu.

O caractere de wu (figura abaixo) parece retratar xamãs dançando em torno de um pilar ou as mangas compridas de vestes xamânicas rodopiando enquanto ela dança. Algumas formas arcaicas mostram mãos fazendo uma oferta que é recebida de cima.

Caracteres chineses representando a palavra wu / xamã

Possivelmente, o glifo mais antigo a partir do qual o caractere wu surgiu representa um sifang - ou quadrante das direções, um conceito da China antiga que parece estar alinhado com o das direções geográficas - e também foi influenciado por um símbolo, que significa “dança”, mostrando uma pessoa com os braços estendidos em mangas compridas.

Alguns dos usos mais frequentes de wu nos Ossos Oraculares eram em relação aos sacrifícios espirituais e a ordens do tipo “trazer o wu”. Também havia inscrições nas quais constava, por exemplo, o texto “adivinhação, o wu proclama”.

Uma inscrição menciona um grupo de nove wu que fazia uma dança ritual antes de sacrifícios. Outras referem-se às mulheres xamãs Yang, Fang e Fan (juro que tentei encontrar alguma informação adicional sobre elas, em vão) realizando cerimônias de fazer chover.

E se ainda não deu para perceber, esclareço: o caractere wu parece estar muito associado a pessoas do sexo feminino. Esse artigo, de fato, defende exatamente a ideia de que originalmente xamãs eram apenas mulheres - embora ainda haja alguma controvérsia quanto ao assunto.

O xamã e o mundo sobrenatural

O xamã, muitas vezes recebia seu chamado depois de experimentar o estresse de risco de vida ou doença. A capacidade de superar tais experiências entrando em um estado alterado de consciência marcava o potencial xamã como alguém especial.

Isso era por vezes reforçado por iniciações fisicamente esgotantes. Sobreviver a tais iniciações significava que haviam dominado o controle sobre poderosas forças sobrenaturais.

As tarefas do xamã - que incluíam fazer chover, adivinhação e medicina - envolviam um elemento de performance por meio do uso da música e da dança. Estas performances ajudavam o xamã a contatar forças sobrenaturais relevantes, seja invocando os espíritos para possuí-los, seja por eles mesmos ascenderem ao reino espiritual.

Arqueólogos encontraram em toda a China, associadas a essas atividades, parafernálias xamânicas como ossos, penas, chifres, chocalhos, máscaras e, mais notavelmente, o tambor.

Substâncias psicotrópicas, que permitiam ao xamã entrar em contato com os espíritos, também desempenhavam seu papel. A dinastia Shang favorecia o vinho, a julgar pela quantidade de vasos de bebida encontrados em túmulos Shang e pelas freqüentes referências ao vinho nas inscrições dos Ossos Oraculares.

O xamã oferecia vinho aos antepassados e usava a bebida para viabilizar o estado mental necessário para a comunicação com os antepassados e os espíritos.

Os grandes vasos de bronze dos Shang são frequentemente decorados com representações de pássaros e animais, de animais compostos e dos seres transformando-se de um tipo em outro. Tais transformações são elementos-chave do xamanismo.

A propósito, a julgar por essa descoberta, eles usavam também uma certa erva mundialmente conhecida.

O papel e a ascensão dos xamãs


Outro xamã mongol, vestido dos pés à cabeça e portando um tambor



Dada sua suposta capacidade de interagir com as forças sobrenaturais e mesmo de controlar essas forças, os xamãs eram figuras tanto poderosas quanto perigosas. Não é de estranhar que eles tenham sido fundamentais para o sucesso de suas comunidades, uma vez que acreditava-se em suas supostas habilidades sobrenaturais.

E à medida em que a civilização chinesa se desenvolveu, tornou-se cada vez mais claro que a manipulação de rituais e estruturas religiosas eram métodos muito eficazes para o controle das massas.

Nesse contexto, a adivinhação foi provavelmente o aspecto mais abertamente político de práticas xamânicas. Se o conhecimento era poder, poderia haver algum mais poderoso que o conhecimento do futuro?

(Ok, talvez o do Flash, com sua capacidade de detonar as linhas temporais...)

Performances ritualísticas eram também um meio para reforçar a autoridade real. O sacrifício desempenhou um papel particularmente importante, que iria perdurar por boa parte da história chinesa.

Aliás, os muitos rituais exigidos do imperador, ou mesmo dos senhores feudais, confirmavam seu status e poder. Esse texto do site Daily Kos nos fornece uma boa visão de como eram os rituais da época:

Durante a dinastia Shang, o rei apresentaria perguntas aos antepassados em nome das pessoas. A cerimônia de adivinhação geralmente acontecia no palácio. Durante a cerimônia, os músicos reais tocavam. O especialista em adivinhação (ou xamã) trazia um osso - geralmente a escápula de bois ou ovelhas - ou um plastrão de tartaruga. O rei fazia a pergunta e o xamã a escrevia no osso. O xamã, ou às vezes o próprio rei, levava um pedaço de metal que tinha sido aquecido até que estivesse vermelho e tocava o osso. O osso rachava com o calor e as rachaduras corriam por ele e pelos caracteres da pergunta. Essas rachaduras podiam então ser interpretadas pelo rei e/ou pelo xamã. A interpretação seria escrita no osso, que era levado aos arquivos do palácio.

Todos esses aspectos permitiam que o grupo dominante ganhasse mais poder e sua autoridade religiosa, por sua vez, legitimava esse poder. É uma tática que, obviamente, continua a funcionar - e não apenas na China, como você bem sabe.

Tais desenvolvimentos acompanharam a mudança de status dos wu. As elites e pelo menos alguns dos xamãs fundiram-se, um fenômeno refletido em fontes literárias posteriores, como o Shiji de Sima Qian, do século II AEC.

Na obra são retratados (entre outras personas que incluem nosso Sun Tzu) os Três Soberanos, ou “Augustos”, e os Cinco Imperadores Lendários - aos quais são atribuídas atividades e habilidades xamânicas.

Os Três Soberanos e os Cinco Imperadores

Esses caras foram reis-sábios, em tese moralmente perfeitos, que teriam usado seus poderes mágicos para proteger seu povo e criar condições de convivência pacífica e harmoniosa.

De acordo com as tradições, a sabedoria, compaixão e poder esclarecido desses seres estavam além da compreensão mortal - e os benefícios que eles concediam àqueles que governavam eram imensuráveis.

Entre os exemplos de iluminação, encontra-se o do Soberano Celestial, Fuxi, a respeito de quem se disse ter descoberto os oito trigramas - o bagua, que é a base do I Ching, sobre o qual nós já escrevemos aqui.

Ao Soberano Humano, Shennong, é creditada a invenção da agricultura e a introdução de ervas para fins medicinais. Por falar nisso, o Imperador Amarelo, Huangdi, é conhecido como ninguem menos que o pai da Medicina Chinesa.

Outro exemplo interessante é o do lendário Yu, o Grande. Sob o reinado do Imperador Shun, ele teria sido desafiado a subjugar a enchente do Rio Amarelo, uma tarefa que - por meio de uma combinação de talento mágico e tecnológico - teria realizado com grande sucesso.

E não foi só isso: em seguida, ele teria projetado um sistema de diques e canais que provou ser de grande e duradouro benefício para seu povo. O “Ritmo de Yu” - os passos de dança que o transportavam misticamente para as estrelas, onde recebia orientação dos deuses - é praticado ainda hoje em certas tradições taoístas.

A derrocada dos xamãs


Dançarina representa xamã em espetáculo na Coreia do Sul, vizinha à China

Após atingir seu ápice no período da dinastia Shang, o xamanismo na antiga China evoluiu para um mero ofício burocrático, especialmente durante o período Zhou Ocidental, 1.050 a 771 AEC, quando o poder do xamã diminuiu.

Houve uma separação cada vez maior entre os assuntos políticos e atividades religiosas. Imperadores já não empregavam xamãs como conselheiros da corte. Em vez disso, eles se tornaram profissionais de um status inferior, contratados pela necessidade de apenas lidar com questões mundanas como secas e doenças - um bom exemplo pode ser visto nesse post aqui.

Este “rebaixamento” do xamanismo, no entanto, não foi o caso em todos os lugares da China na era Zhou.

As conhecidas Canções do Sul (ou de Chu, em chinês Chu Ci), por exemplo, são uma antologia de poemas repletos de imagens xamânicas que tem origem no Reino de Chu - um estado famoso por suas crenças e rituais xamânicos (além de ser o grande inimigo do Reino de Wu, que deu fama a Sun Tzu).

Ban Gu, um historiador do primeiro século AEC, descreveu Chu como um lugar onde as pessoas

acreditam no poder de xamãs e espíritos e são muito viciadas em lascivos rituais religiosos.
A sobrevivência dos rituais e crenças xamânicos em Chu é um contraponto às mudanças de status dos xamãs em outros lugares na China. Mesmo assim, não impediu que ao longo do tempo os poderes espirituais do xamã fossem cooptados para a busca do poder político.

Questões em aberto


Bastão xamânico em forma de um animal fantástico (semelhante a um dragão)

Como tudo na China, os xamãs e o xamanismo são assuntos que dão pano pra muita manga. Aqui, a gente tratou apenas de algumas questões básicas, com foco especial na China do período em que Sun Tzu teria vivido e de períodos anteriores.

Um aspecto sobre o qual não consegui encontrar conteúdo, e que muito me interessa, diz respeito a predestinação. Haveria pessoas que já nasciam com o caminho traçado para se tornar um xamã? De que classe? Homens ou mulheres? Não encontrei respostas.

Sobre outras questões, como a ligação da cultura xamânica com as mulheres, não me aprofundei de propósito. Mas pode ser que num futuro não muito distante apareçam textos específicos por aqui.

Aguarde e confie!

Enquanto isso, espero seus comentários a respeito do texto. E se acha que pode ser útil para mais alguém, não tenha medo de compartilhar.

A torcida do Brasiliense agradece!

Zài jiàn!

Livros

Aqui temos links para alguns livros que encontrei na Amazon sobre o tema e que talvez possam interessar:






Links

Seguem links com muita informação sobre o assunto, todos em inglês (é difícil encontrar material bom na internet em português):


Créditos e referências

Ilustrações e fotos creditadas na ordem em que aparecem no post.

2 comentários:

  1. Adorei seu post ��.
    É muito difícil encontrar bons sites que forneçam boa informação sobre esse tipo de cultura (uma das muitas desvantagens de não compreender o inglês). Também quero me aprofundar mais nessas questões, mas por ora, seu texto já me deu uma ótima base.

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    Respostas
    1. Que bom, Le Stark.

      Gostamos quando gostam de nosso conteúdo, e mais ainda quando sabemos que mais de três pessoas o leem (rsrs).

      A propósito, talvez você se interesse por um desses textos, daqui do blog mesmo:

      - http://www.suntzulives.com/2017/05/i-ching-livro-das-mutacoes-64-hexagramas-oraculo-chines.html
      - http://www.suntzulives.com/2018/03/concubinas-historias-de-prazer-e-sacrificio-na-china-antiga.html

      Abraço e tudo de bom!

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