Conheça o cara que todos amavam odiar (na China antiga)
Você que está sempre acompanhando nossos posts certamente se lembra do papel de Nang Wa, primeiro ministro de Ch'u, no desenrolar das pelejas entre esta e a província de Wu -- na qual serviu Sun Tzu, nosso querido autor d'A Arte da Guerra.
Caso você não se lembre e esteja com preguiça de acessar o link, adianto que Nang Wa se achava o cara, mas (aparentemente) não passava de um bostinha de merda, tão ganancioso e arrogante quanto covarde.
Pelas leituras que já fiz, posso deduzir com margem de erro bastante reduzida que ele foi o principal responsável pela derrota de sua província, mais do que Sun Tzu, Wu Tzu-hsü e Po P'i foram responsáveis pela épica vitória do wang Ho-lü.
E, como você já deve ter percebido, ele será um dos principais personagens da história que escrevo.
Dito isto, vou reproduzir aqui duas passagens dos comentários aos Anais da Primavera e Outono que nos ajudarão a conhecer melhor Zichang (nome pelo qual também era conhecido).
O ministro está morto, viva...
Em 518 AEC -- ano do carneiro de água no tradicional calendário chinês --, já sob o governo de P'ing, Nang Wa tornou-se ministro-chefe (em lugar de Yang Gai, ou Zixia, que havia morrido) e mandou ver nos trabalhos de fortificação da capital Ying.Xu, diretor de Shen (e provavelmente um desafeto do ministro, em minha pessoal e intransferível opinião), proferiu um inflamado discurso, cujo início critica estes trabalhos:
Nang Wa está certo que perderá Ying. Se nós somos incapazes de defendê-la, fortificá-la com muros será inútil. Antigamente, as defesas dos filhos dos Céus eram as tribos rudes em cada lado do reino; e quando sua autoridade diminuiu, as várias províncias tornaram-se suas defesas. As defesas dessas províncias eram seus vizinhos, todos ao seu redor; e quando seu poder diminuiu, as quatro fronteiras passaram a ser suas defesas. As províncias cuidavam muito bem das fronteiras e formavam alianças com seus vizinhos para obter ajuda.
Xu, a seguir, passa a discorrer sobre as (boas) consequências do que ele acaba de descrever:
Então, as pessoas calmamente cultivavam os campos e os trabalhos importantes das três estações eram realizados com sucesso. As pessoas não tinham motivo para ficarem ansiosas na província e não havia apreensão sobre os assuntos do exterior; não se pensava ser necessário fortificar cidades. Mas agora estamos com medo de Wu e fortificando Ying. Pequena é a defesa. Mesmo aquela apropriada a uma província, quando seu poder é pouco, está além de nós; como podemos escapar de perder Ying? Anteriormente, o conde de Liang cavou um fosso em seu palácio e as pessoas dispersaram-se. Quando as pessoas abandonam seus superiores, nada pode suceder senão a ruína.
Por fim, conclui com uma espécie de dever de casa que, se realizado (a exemplo do que teriam feito governantes anteriores), deixaria a província naturalmente fortificada, eliminando a necessidade de se construírem defesas:
Se nós ajustamos corretamente nossas bordas, mantivemos nossas terras e campos bem regulados, fizemos nossas estações de refúgio e as montamos onde é mais difícil o acesso, cultivamos a afeição das pessoas -- as arranjando claramente em companhias de cinco, de maneira que possam vigiar os perigos --, mantivemos boa fé com as províncias vizinhas, prestamos bastante atenção no descumprimento dos deveres de nossos oficiais, mantivemos todas as cerimônias de relações, não fomos nem arrogantes nem cobiçosos, nem fracos nem violentos, completando desta maneira nossas defesas e esperando o que quer que possa acontecer, o que deveríamos temer? Diz a ode:
'Sempre pense em teu antepassado,
Cultivando sua virtude'
Não temos nós exemplos desde Ruo'ao e Fenmao até Wu e Wen? Seus territórios não excediam 100 li quadrados. No entanto, cuidavam atenciosamente de suas fronteiras e não fortificaram Ying. Agora, nosso território possui muitos milhares de li quadrados e devemos fortificar Ying! Não é difícil nossa situação?
Ruo'ao, Fenmao, Wu e Wen foram governantes de Ch'u entre os anos de 791 e 677 AEC, mas acho que você percebeu isso, né?
Para consultar o texto original, em inglês e chinês, acesse Traditions of Exemplary Women e procure o comentário ao item 10, no 23° ano.
O rei está morto, viva...
Três anos depois deste petardo na fuça (515 AEC), o wang P'ing morre e Nang Wa propõe que Zixi o substitua, em vez de Chen, filho e herdeiro legítimo do falecido.Argumentou para isso que Chen era muito jovem e sua mãe não seria uma esposa apropriada ao rei, pois ela já estava comprometida com seu filho Jian (não me peçam mais detalhes por ora, só tenho a mínima ideia, explicada mais abaixo).
Para complementar seus argumentos, tratou de elogiar Zixi:
Zixi é experiente e ama o que é bom. Apontá-lo por ele ser o mais velho estará de acordo com a natureza, e quando o escolhermos por sua bondade a província estará bem governada. Não devemos colocar estas coisas em lugar de todas as outras: um wang de acordo com a ordem natural e o bom governo da província?
Claro que sua proposta foi uma bola fora clássica. Zixi ficou furioso e disse:
Isto é para jogar a província na confusão e mostrar má vontade para com nosso falecido governante e wang. Há a província que é nosso suporte lá fora; ela não deve ser insultada. Há o legítimo herdeiro do rei; ele não deve ser destituído. Se nós deixarmos de lado o parente de Ch'in, iremos precipitar sua inimizade. Destituir o herdeiro seria inauspicioso e eu que seria responsabilizadoApós isso, Nang Wa, com medo, aquiesceu e Chen tornou-se wang Chao em lugar de seu pai.receber o nome da escritura [também não me pergunte, traduzi literalmente de "I shall receive the name of the deed" e não consegui descobrir o que significa]. Embora você me tenha dado Tudo Sob os Céus, eu não concordaria com tal proposta; por quê eu faria isso pela província de Ch'u? O ministro-chefe deve ser executado.
O texto original, em inglês e chinês, também é do site Traditions of Exemplary Women, agora no comentário ao item 6 do 26° ano.
Alguma explicação
Ambos os episódios são apresentados nos Anais sem qualquer contextualização (pelo menos nos trechos em que aparecem) e não dá para ter certeza da exata natureza dos relacionamentos entre Nang Wa e seus dois críticos.Por sorte, estou a ler o Ancient China Simplified, de Edward Harper Parker, e há poucos dias me deparei com um trecho que explica melhor esse último episódio (página 163):
Com a morte de um rei de Ts'u em 516 [ah, essas datas...], foi proposto colocar no trono, em vez do jovem filho do rei, seu irmão mais novo [o Zixi], nascido de uma mãe inferior, sob o argumento de que a mãe do filho em questão [o herdeiro legítimo] era a esposa obtida [da província] de Ts'in pelo rei para o casamento de seu filho mais velho (que havia então se juntado aos inimigos do rei), e com quem o jovem rei havia posteriormente decidido se casar.
Ts'u é apenas outro jeito de escrever Ch'u.
Ts'in e Ch'in, no caso, referem-se ao mesmo local, a província que viria a unificar toda a China de então sob um único governo, em 221 AEC, mas que no final do século VI AEC não era lá tão poderosa.
Mesmo assim, quase fez com que Nang Wa tivesse sua cabeça colocada a prêmio, simplesmente por sugerir (talvez até acertadamente, que injustiça!) que o herdeiro legítimo, filho de P'ing e com sangue Ch'in circulando nas veias, fosse destituído a favor de Zixi, irmão mais novo do falecido.
E por enquanto é o que tenho pra falar sobre Nang Wa.
Acho que ainda teremos um outro post sobre ele, mas se eu me deparar com mais detalhes sobre os episódios acima, certamente compartilharei aqui.
Se nada mais eu descobrir sobre isso, ótimo também!, terei muito o que criar para transformar o famigerado primeiro-ministro de Ch'u em uma das principais personagens do livro.
Você sabe que estou escrevendo um, né?
De qualquer maneira, o que parece claro é que nem Xu, nem Zixi iam lá muito com a cara de Nang Wa. Obviamente, isso pode e será usado contra ele na história (sem dó nem piedade).
Enquanto isso não acontece, vamos continuar a conhecer um pouco mais a época em que A Arte da Guerra teria sido gestado. Mas guarde sua ansiedade, pois não será neste post, que acaba de acabar.
Inté!
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Imagem obtida no site Projeto Família Feliz, sem indicação autoria.
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